Vamos fazer uma última viagem, pedi, enquanto a olhava nos olhos com a certeza de que os meus gritavam medo.
«Onde é que queres ir?»
«A qualquer lado. A uma cidade que nenhum de nós conheça.»
«Para quê?»
«Para voltarmos.»
«Onde?»
«A casa. A nós.»
Os olhos dela são dois cães de rua, sujos, doentes, cansados. São dois cães que dormem a espaços, o cheiro do pelo molhado a entranhar-se em todo o lado. Os olhos dela já não dizem nada. Há muito tempo que os olhos dela já não dizem nada. Calaram-se quando desistiu.
Antes.
Chegava a casa e tinha aqueles olhos, dois perdigueiros cheios de vida, à minha espera. As chispas que saltavam deles eram a montra da excitação. Era honesto aquele frémito. Era ela toda ali dentro, ali inteira naqueles olhos. Depois foi-se apagando. Os dias. O trabalho. O cansaço. As conversas. Eu. Tudo igual. Todos os dias tudo igual. E ela, que antes largava brilho dos olhos como os cães que abanam a cauda na antecipação do dono, deixou de se levantar. Eu chegava e ela na cama, no sofá, na banheira. A cabeça tombada sobre a mesa, sobre o corpo, sobre o silêncio. O brilho dos olhos baço. O brilho da pele baço. O brilho dela baço. E eu a pôr a chave à porta na esperança de que hoje fosse o dia de voltar a encontrar os perdigueiros. Nunca mais os vi.
Por isso, quero ir procurá-los em ruas que nunca calcorreámos. Quero procurá-los em cafés, em esquinas, em ombreiras, em igrejas, em pontes, em recantos, em comboios, em apartamentos, em mapas, em pessoas, em conversas, em silêncios. Quero procurar os perdigueiros no sítio onde sei que não os perdi, embora não saiba que sítio é esse. Quero levá-la pela mão até que levante os olhos e veja que o céu é diferente ali. Quero que veja o recorte dos prédios na penumbra. Que veja as mãos que a guiam pela turba. Quero que sinta o cheiro de um café estrangeiro acabado de tirar. Quero que tente decifrar que língua é aquela que aquele casal está a falar. Que imagine as histórias das pessoas com quem nos cruzamos, como fazia quando viajávamos ainda acompanhados de dois perdigueiros. Quero que depois me pergunte se me importo que escreva um bocado, e que se deite de barriga para baixo em cima da cama do hotel, o computador à sua frente e aquelas vidas todas a ganharem corpo no desfiar de páginas.
«Não quero sair daqui.»
«Porquê?»
«Porque já andei de mais.»
«Há sítios que ainda não conhecemos.»
«Vai sempre haver sítios que ainda não conhecemos. E daí?»
«O mundo é demasiado grande para ficarmos sempre aqui.»
«Já reparaste que esta estrada não tem saída?»
«Não precisamos da estrada quando temos um voo para apanhar.»
«Não quero.»
E naquele não quero percebi que os perdigueiros não têm como regressar. Ou talvez regressem, mas não para mim.
Olho para ela, a testa encostada à janela, as mãos a abraçar o regaço. Está macilenta, a pele perdeu o viço, as olheiras são cada vez mais azuis, como dantes eram os olhos dela. Olho para ela e não sei se o que vejo é um fantasma ou uma recordação. Na minha mente, a silhueta dela sempre curvada, como se quisesse fundir-se com aquela amálgama de vidro e metal. Na minha mente, os perdigueiros espertos, as gargalhadas, as unhas de verniz impecável, o cabelo brilhante, os dedos que desfiavam histórias sobre as teclas. E, na janela, a marca redonda deixada pelo último instante em que encostou ali a testa. Antes de cair. Antes de sufocar. Antes de morrer.
Por favor, diz-me que esta passagem vai fazer parte do próximo livro.
Obrigado.