O gato chegava sempre primeiro, como se quisesse aquecer-lhe o parapeito. Era branco e quase tão velho como ela. Em idade de gato, se a idade dos gatos obedecesse a uma métrica alternativa como a dos cães, isto é. E ela, velha em idade de gente, era branca como o gato. O cabelo apertado num carrapito que a fazia parecer mais alta do que o seu metro e quarenta e três, metro e quarenta e oito antes de a idade lhe roubar altivez, antes de a coluna se vergar ao peso do cansaço e das mágoas, das saudades e das doenças que lhe levaram toda a gente menos o gato.
Eu já sabia: todos os dias, antes das oito, velha e gato à janela. Os dois espraiados, os dois adormecidos, os dois abandonados apesar de se terem um ao outro. Eu passava debaixo da janela e o gato, apesar de velho e farto de confusão, de barulho, de pessoas, de existir, soltava um miado como que a chamar-me. E eu esperava sempre que aquele som chegasse para levantar a cabeça e dizer bom-dia, dona Elvira, bom-dia, Tomé.
Nenhum dos dois me respondia. Ela fixada nos esparsos carros que atravessavam a rua rumo ao mundo, na direção da vida que começava a acontecer por aquela hora, crianças a serem deixadas nas escolas, distribuidores prestes a começarem a sinfonia de campainhas que haveria de lhes encher o dia, gente a espalhar-se em direção ao trabalho, a castigos que lhes pesam nas costas como penas de prisão perpétua. Ele adormecido no instante imediatamente a seguir a soltar o miado que me chamava a atenção.
Éramos três paralelos que nunca se cruzavam, embora seguissem a milímetros uns dos outros. E eu seguia rua adiante, telefone na mão, notícias a chegar, a mensagem a que não respondi ontem, aquela reunião a fazer saltar um aviso do calendário, estou atrasado, já devia estar a descer a avenida, a outra mais a norte que desemboca junto ao rio, e hoje não chego a ter tempo para o café.
A esta hora, a dona Elvira e o Tomé já foram para dentro, são quatro da tarde, o almoço já se fez e já se comeu, talvez a velha tenha ido às compras, talvez a miúda neta da senhora da mercearia a tenha ajudado a levar o saco para casa, talvez o Tomé tenha tido direito a um miminho, uma lata de comida húmida ou uma festa nas orelhas.
Quando eu chegar já há de ter anoitecido, o gato já estará adormecido aos pés da dona que, sentada no sofá, há de estar a ouvir a novela e digo ouvir porque ela já não vê bem, velha mesmo velha em idade de gente, olhos cegos mesmo cegos em cegueira de cansaço. O jantar terá sido uma sopa e uma côdea de pão e o Tomé há de ter lambido o prato, o pijama veste-se depois da higiene íntima, o autoclismo não se puxa porque é de noite e não se incomodam os vizinhos à noite, a malga do gato acolhe meia dúzia de biscoitos para que não acorde a dona assim que o sol fizer tenções de se levantar.
E eu passo à porta com o cansaço nos ombros, os números que me pesam toneladas na cabeça, o aviso do chefe, andas distraído, as contas saem-te todas ao lado, assim não dá, Jorge, assim não dá. Era melhor quando ela ainda não se tinha ido embora, quando eu ainda acreditava que podíamos ir a qualquer lado e que, na volta, regressaríamos a muito mais do que quatro paredes. Era melhor quando eu dormia noites inteiras, quando não sonhava com monstros que me vivem cá dentro, que me engolem, que me vomitam, que me destroem. Era melhor quando a janela daquela casa abandonada há mais de vinte anos ainda mostrava a silhueta de um gato e de uma velha a quem eu dizia todos os dias, sem falhar nenhum, bom-dia, dona Elvira, bom-dia Tomé. Era melhor quando eu não era feito de cinzas. Era melhor quando eu não era feito de dor. Era melhor quando as verdades me salvavam. Hoje, se disser a verdade, o mais certo é enlouquecer.
fantástico!