Ando há uma semana a pensar nas pequenas memórias que me restam de momentos aparentemente insignificantes. Porém, nunca as esqueci. Não entendo a mecânica disto. São memórias que nada guardam além de si mesmas. Não são partes de momentos grandiosos, nem fizeram parte de algo maior, algo que tenha trazido uma mudança drástica para mim. Ainda assim, não as esqueço.
O sabor das batatas fritas pala-pala da minha avó Florinda. Acompanhavam os melhores bifes de peru que comi até hoje (e não como bifes feitos por ela seguramente há uns 25 anos), ou o coelho estufado.
O cheiro das sardinheiras do quintal da minha avó Primitiva. Ainda hoje é um cheiro que adoro porque me leva àquele lugar e aos verões da minha infância.
As tardes que passava a brincar, nesse mesmo quintal, com a minha prima Zé. Fazíamos «comidas» com terra, limões pequeninos, ervas e farelo dos porcos. Usávamos um fogão a lenha (o fogão era verdadeiro, «usar» é forma de dizer) e passávamos horas de volta daqueles tachinhos.
As canjas de galinha da minha avó Primitiva, comidas no quintal, nos fins de tarde de verão.
Lembro-me de ir à taberna/barbearia da aldeia, e de tomar conta dos netos do barbeiro. Era pouco mais velha do que eles, mas lembro-me de lhes dar o jantar, no quintal da taberna.
As idas à loja do senhor Januário, que também era onde se enviavam as cartas. Lembro-me de ir mandar postais para os meus pais. Passava o verão lá, na aldeia, longe deles, e as saudades matavam-se assim e em telefonemas corridos no telefone público de um dos cafés. Havia um cubículo com um telefone e havia, claro, o contador de impulsos que depois ditava a conta a pagar.
Lembro-me dos grilos que mantinha em gaiolas próprias, na varanda do meu quarto. Alimentava-os a alface e não duravam muito.
No primeiro dia de aulas, na primária, tive medo da minha professora, a dona Amélia. Mulher de apresentação cuidadíssima, não me lembro de a ver sem ser de batom garrido nos lábios. Vieram dela as primeiras reguadas na mão. O delito: um erro num ditado. A punição: três reguadas e escrever a palavra corretamente três vezes. Veio também com ela o medo de errar, não pelos erros em si, mas pelas consequências.
O vitiligo do professor Cardoso, o meu professor da terceira e da quarta classe, quando algumas turmas foram transferidas para a escola de cima. Tinha aulas numa espécie de casa de madeira, temporárias. A voz grave do professor era quanto bastava para nos ter a todos na linha. E as manchas que tinha na pele assustavam-nos porque não sabíamos o que eram.
O caminho que fazia para o ciclo, 1,5km a pé para cada lado, fizesse chuva ou fizesse calor. Ia sozinha, os meus pais ainda não tinham carro e não havia autocarros para aquela parte da vila. Lembro-me do dia em que, depois de ter apanhado uma chuvada monumental, cheguei ensopada à escola. Estava molhada até aos ossos e isto não é um eufemismo. Regressei a casa e faltei às aulas nesse dia. Tinha dez anos.
«Norte e Sul» aos serões, com o meu pai. A minha mãe trabalhava de dia e estudava à noite e os serões eram só nossos, eu e ele a jantar, a irmos ao café a seguir, eu a brincar às caixas registadoras, os donos do café a acharem-me muita graça por eu conseguir mexer na máquina e fazer trocos. Tinha seis, sete anos. Depois íamos para casa e víamos o episódio da série. Às quartas à noite, víamos o filme que desse no Lotação Esgotada. Depois, adormecia na cama dos meus pais com o meu pai a cantar-me a canção da cabacinha. Ainda tenho a voz dele na cabeça, a cantar-me isto. Mais tarde, meia-noite e tal ou coisa que o valha, chegava a minha mãe e levava-me ao colo para a minha cama. Era o meu momento com ela, durante a semana. Só a via e conversava com ela durante o fim de semana.
Os livros da Agatha Christie que lia no verão, sempre acompanhados de uma carcaça com manteiga e fiambre. Ainda há pouco tempo, a reler um deles, senti o sabor daqueles lanches e foi exatamente isso que fiz. Soube-me à adolescência que gastei entre as páginas daqueles livros, que adorava.
O cabelo ruivo da minha professora de Português do oitavo ano. Não me lembro do nome dela, mas foi uma das primeiras pessoas que me incentivou a escrever para além do que era pedido nas aulas.
O cheiro a terra molhada, em pleno agosto, nos finais de tarde, quando regressava da Praia Grande pelo meio da serra. O barulho do Opel Corsa vermelho do meu pai, que se esforçava para subir aquilo. E o dia em que atolei o carro em areia e precisei de chamar reforços para me ajudarem a tirá-lo dali. Conseguimos com recurso a duas tábuas perdidas por perto, que pusemos debaixo dos pneus de trás. Como nos filmes.
Ter aprendido a desenhar com recurso a livros de banda desenhada do Mickey, lápis de carvão, clipes e folhas de papel vegetal. Punha o papel vegetal por cima dos desenhos e desenhava por cima, até ser capaz de desenhar sem a ajuda dos livros. Tinha 12 anos, por aí.
O desenho que fiz de uma capa de disco dos The Doors, no 9º ano. Igual. Não sei onde está esse desenho, mas creio que ainda não foi para o lixo. E as horas que passava a ouvir a banda, nessa altura. Gostava mesmo daquilo. Agora não sou capaz.
Os vestidos que a minha mãe me fazia, e que davam sempre briga, porque eu queria de uma maneira e a minha mãe achava melhor fazer de outra. E eu a ajudá-la a tirar alinhavos de dezenas de peças de alta costura que ela costurava em casa. Trabalhava para o Augustus, ia buscar os cortes de tecido ao Imavis, em Picoas, e depois ia entregar as peças já costuradas. Anos disto. Só aprendi a costurar muito mais tarde, ali pelos 31 anos. Fiz malas, carteiras e mais uma série de coisas que vendia em blogs e no Etsy. Isto foi antes de ter aprendido a fazer cake design mas o processo por detrás foi o mesmo: aprendi a fazer e rapidamente comecei a vender o que fazia. Se isso era a ideia quando aprendi? Não, de todo. Mas aconteceu.
Estas pequenas memórias encadeiam-se noutras, que levaria milhares de caracteres para desfiar. Vão e vêm em ondas. Houve coisas de que me lembrei enquanto estava a escrever este texto e outras de que me lembro sempre. Vozes. As vozes são coisas que guardo muito presentes. Dizem que as vozes são das coisas mais fáceis de esquecer, quando deixamos de as ouvir. É por isso, e porque não confio a 100% na capacidade desta memória que ainda não me falha mas que, com o tempo, há de começar a fazê-lo, que vou guardando pequenos vídeos dos meus pais, principalmente. Quero nunca me esquecer das vozes deles, nem dos trejeitos, nem das coisas que os fazem não a Ana Maria e o Augusto, mas a minha mãe e o meu pai. Um dia, tudo isto poderá desvanecer-se. Até lá, guardo todos os bocadinhos que consigo colecionar. Se um dia precisar de um auxiliar de memória, sei onde posso regressar para me reencontrar com as memórias que possam parecer perdidas. Enquanto isso não acontece, regresso a estas pequenas memórias avulsas em momentos igualmente pequenos e sem história. E é assim que se enchem as vidas: pequenos nadas entre momentos grandiosos. Como a areia que se encaixa nos espaços vazios entre pedras maiores empilhadas num frasco.
Também brinquei no mesmo fogão de lenha,com os farelos,as couves,as panelas de barro. Este texto fez-me lembrar de muitas coisas da infância na nossa Aldeia.
Que texto bonito, Lénia. Achei a 11ª memória especialmente enternecedora 💜