Há qualquer coisa de pacÃfico na repetição dos dias. Quando era miúda, nada me irritava mais do que as rotinas. Abominava a ideia de fazer a mesma coisa dia após dia, sempre tudo igual, margem nenhuma para a surpresa e para o improviso. Hoje, com muito mais ansiedade na conta, o facto de conseguir prever os meus dias traz consigo uma tranquilidade de que recuso abdicar.
Crescemos, não é? Acabamos sempre por crescer.
O café. Encontrei o café que me sabe bem (é do Mercadona) e não vario muito. Mais do que isso, as rotinas em torno do café. O primeiro do dia, durante a semana, tirado ainda de pijama, bebido na cozinha, cortado com água para arrefecer mais depressa. E o dele levado até ele, que o bebe antes de se levantar. O café americano feito ao fim de semana e bebido na cama, com um bagel ou uma torrada. O segundo café do dia, durante a semana, tirado assim que chego ao escritório. No dia em que fico a trabalhar em casa, o segundo café chega a meio da manhã, antes das onze, sempre.
Tendo a fazer sempre o mesmo caminho de e para o trabalho. Gosto de conhecer as paisagens, de rever prédios, coisas, pessoas. Mesmo que vá a ler no comboio, há sempre um momento ou outro em que olho pela janela à procura de rever coisas que me trazem alguma paz. A estação de Sete Rios, estranhamente, é uma delas. Foi a minha estação de desembarque durante uns anos e é bom sentir aquele gostinho familiar, ainda que por um instante.
Quando vou para o escritório de comboio, há um ponto especÃfico em que gosto de levantar os olhos do livro (ou do telefone - hábito que gostava de conseguir aniquilar) para olhar para o Tejo. Vejo o rio e essa vista faz-me sempre pensar na sorte que tenho. Estar ali, em Lisboa, quase todos os dias, a ver a luz sobre o rio, a fixar o horizonte, é tão sublime. Isto é perto de Braço-de-Prata e há um edifÃcio em especÃfico para onde gosto de olhar sempre. Gosto desta Lisboa decadente e industrial, pouco turÃstica, ainda inconspurcada. Sorte, já disse?
Há muito tempo que não me sentia tão comprometida comigo. E que não conseguia treinar quatro vezes numa semana. Claro que estou cheia de dores e a pensar que talvez, só talvez, não seja uma ideia brilhante ir treinar já amanhã outra vez. Mas vou. Com dores, sem vontade, com vontade, como for. O que mudou? Não sei. Mas sabe-me esta sensação de que sou eu que estou a controlar o processo e não o inverso.
Estou a ler (e a rever, mas pouco, porque ele está maravilhoso) um manuscrito que espero que venha a ver a luz do dia em breve. Conheci a Joana, a autora, num dos cursos de revisão e estou absolutamente fascinada pelo talento dela.
Depois de duas viagens ida-e-volta do meu manuscrito para a editora, percebi que prefiro escrever o que falta do livro e entregar tudo só no final. Este vai-e-vem não é, de todo, o meu processo. Sinto que me encrava, que me acrescenta medos e dúvidas e todos sabemos que 80% do ADN de um escritor é puro sÃndrome do impostor, portanto se há coisa de que não preciso é de ainda mais medo.
Ontem, inesperadamente, tive a ideia para um capÃtulo que me faz muito sentido acrescentar ao livro. Não sei onde ele vai caber. Não preciso de saber. É esta a maravilha de estar a escrever um livro que não é linear em termos de linha temporal. Escrevi o inÃcio desse capÃtulo de rajada, uma hora e pouco a seguir ao jantar. Mil e trezentas palavras sem esforço nenhum. Não o acabei, mas deixei duas ou três frases para lhe pegar hoje novamente.
Escrever «ontem», «hoje», «na semana passada» aqui na newsletter é um bocadinho parvo. Nunca sei quando me leem e estas balizas temporais não servem nada senão a minha necessidade de controlo das narrativas. Nunca tinha pensado nisto.
Andamos a ver uma série que já me tinha passado pela frente há uns tempos. Bloodline, na Netflix. É uma espécie de Succession mas em bom (eu não aguentei mais do que uma temporada de Succession, a música do genérico gerava-me uma ansiedade brutal, chegava a nausear-me). Continua a ser uma história sobre uma famÃlia cheia de fendas e de coisas por curar, mas há realmente coisas a acontecer, não são apenas fedelhos mimados a quererem ser promovidos a imperadores (na verdade, Bloodline é tão mais do que isso!).
E falando na música do genérico que me punha o coração a bater descompassado: a minha playlist de escrita do livro é composta só por música clássica, com especial ênfase em violinos. Isto, claro, viciou o meu algoritmo do Spotify que agora só me apresenta música clássica quando o deixo em autogestão. E foi assim que encontrei isto. Estava a ouvir a música sem ver o que era e senti que reconhecia ali qualquer coisa. Pois.
Tenho saudades de ir ao cinema. Não me lembro da última vez e sinto que está na altura. Não ando sequer a par do que está em sala e eu já fui a cinéfila que sabia exatamente o que saÃa quando e que ia ver um filme praticamente todas as semanas. Mas o tempo é um elemento pouco elástico, não é? Menos para as mulheres. Para nós, parece que consegue sempre esticar mais um bocadinho. Tema para outro dia.
Sinto que este formato meio bullet points facilita a leitura. Concordas comigo? Gostava mesmo de saber a tua opinião, porque sinto que talvez tenha encontrado o formato que me faltava descortinar para fazer desta newsletter uma coisa mais regular como, aliás, foi sempre a minha intenção.
Boa tarde Lénia, é muito bom ler-te :-) Depois do teu livro (que foi uma excelente descoberta) este teu "palavra por palavra" é uma pausa na rotina diária que me sabe lindamente. Muito obrigada pela partilha destas palavras que consegue transportar-nos para a beleza que a simplicidade da vida encerra (e que por vezes não valorizamos, ou nem damos conta). E já agora: também gosto do formato "meio bullet points" :-) Keep going. Muito obrigada.
Belas palavras, sim necessitamos rotinas, pequenos gestos marcadores do tempo, tenho buscado isso em meio as atribulações do dia a dia. Te leio em BrasÃlia, Brasil.