Se o crime for pensar demasiado nos «e se?» da vida, então sou absolutamente culpada e aceito a sentença. [A sentença é esta mesma: viver a pensar nos «se» acaba por nos tomar tempo que podíamos usar para viver o que é real.] Confesso que já gastei (e ainda gasto) demasiado tempo a pensar no que poderia ter sido e não fui. No que poderia ter sido e não foi. Nas coisas que poderia ter feito e não fiz. Talvez esta seja a maldição dos escritores: temos demasiada gente viva dentro de nós e acabamos a pensar em milhares de possibilidades. Mas antes de ser escritora já eu pensava ser coisas que nunca cheguei a ser. Que ainda não cheguei a ser. Que talvez nunca venha a ser, afinal. Há quem sonhe ser astronauta ou piloto de Fórmula1. Há quem sonhe ser o Ronaldo ou o que vier para assinar a conta de melhor jogador de sempre, depois do Ronaldo. Há quem sonhe ganhar um Oscar, um Pulitzer, um Nobel. Há quem sonhe não ser nada disto. Há milhares de sonhos que ficaram por cumprir (e, felizmente, outros tantos que se cumprem). Estes são os meus.
Locutora de rádio. Gostava de ter feito rádio. Gostava de me ter sentado atrás de um microfone, a conversar. Nos idos anos 90 (circa 98 ou coisa que o valha, porque a minha memória para isto em particular não é grande coisa), cheguei a fazer testes de voz na Renascença. Obviamente, não passei. Tinha uns 19 anos, mais coisa, menos coisa, e claro que aquilo não ia dar em nada. Ainda assim, gostava que tivesse dado. Ou que um dia dê.
Produtora de TV. Gostava de ter podido estar atrás das câmeras, a organizar a coisa. Estimo que me tivessem dado já uns cinco AVC, a esta altura, com os nervos e com o stress. Mas gostava.
Editora literária. Gostava de poder trabalhar com mercados internacionais, explorar o que se está a lançar lá fora e trazer para cá. E gostava mesmo de trabalhar com uma editora menos mainstream, que publicasse verdadeiras pérolas. (Mas sei que é preciso publicar coisa mais massificadas que são as que pagam os custos de edição das outras. E está tudo certo).
Médica-legista. Isso, autópsias. Porquê? Primeiro, porque pior do que está não fica. Nunca nenhum médico-legista foi processado por negligência médica, creio. Fora de brincadeiras, gostava de perceber os como? e os porquê? clínicos. Gostava de encontrar as respostas em falta, e de ajudar a fechar ciclos.
Psicóloga forense. Sim, para trabalhar na PJ. Para ser investigadora. Para perceber as mentes retorcidas dos criminosos. Para entender as razões e a falta delas.
Escritora. Já sou, eu sei. Mas não a tempo inteiro. Gostava de poder sê-lo sempre, sem ter de ser mais nada. Sem precisar de ter um trabalho das 9 às 18h para pagar contas. Gostava de poder sentar-me e escrever, sem me preocupar com o IRS e o IMI e a segurança social. Gostava de poder soltar esta gente toda que vive dentro da minha cabeça (são personagens, não são casos para psicólogos forenses, ok?) e de lhe dar voz. E a verdade é que, sendo escritora, posso ser muita coisa. É essa a beleza da escrita, para mim. Quando escrevo, visto uma pele que não é minha. Tenho opiniões que não são minhas, descrevo coisas que nunca faria. Torno a realidade uma coisa elástica e acabo a viver muitas vidas assim, entre caracteres.
Fico sempre encantada quando vejo gente que cumpriu sonhos. Pessoas que são o que sonharam ser são uma fonte de onde bebo muita da inspiração que levo para outras coisas. Vibro com pessoas que estão exatamente onde querem estar, que não precisam de hipotecar nada em prol de uma vida minimamente confortável. Quem dera que pudéssemos viver todos assim, fazer todos isto de ir atrás dos sonhos e de os cumprir.
Mas talvez a verdadeira lição venhas dos outros, dos que não cumpriram o que sonharam, dos que vivem para além do que um dia imaginaram para si. A estes, sim, é necessário subir o volume do aplauso. Para que saibam que, apesar de tudo (ou por isso mesmo), são vistos, ouvidos e sentidos.
Também tenho muita coisa que gostaria de ter sido, ainda hoje acho que não faço totalmente o que gostaria mas também já concretizei muitos sonhos! o importante é o equilíbrio, certo? Adoro ler os seus post's, espero que continue.
Uiiii, tantas coisas que gostaria de ter sido também... Treinadora de cães, escritora de ficção a tempo inteiro, agricultora...