Vieram prendê-lo, disseram. E eu não acreditei. É impossível acreditar em verdades que a nossa cabeça se recusa a ver. Foi assim durante anos e anos. Eu via, eu sabia, mas não acreditava.
Se me perguntassem, diria sempre que ele seria incapaz de lhe fazer mal. O meu irmão era um exemplo de retidão. De entre os dois, eu era a erva-daninha. Era a mim que podiam apontar falhas, não a ele. Eu sempre fora a aventura, o desafio, o inconformismo. Dizerem-me que não podia fazer alguma coisa era o mesmo que mandarem-me fazê-la imediatamente: não passavam dois segundos até que eu tivesse desatado numa empreitada para contrariar quem tentasse impedir-me de me mexer. Ele era o pacato: acatava tudo, obedecia a tudo, não questionava nada. Sorria e cumpria ordens, como se fosse exatamente isso que o fazia feliz.
Quando a conheceu, foi como se se iluminasse. E eu gozava com ele porque, ainda por cima, o nome dela era Luz.
«A Luzinha que te alumia não vem cá hoje?», desafiava-o.
Mandava-me calar, raramente me respondia, mas ela aparecia quase sempre. Gostávamos dela. Era mais vivaz do que ele, mais aguerrida. Pensávamos que seria a verve que lhe faltava, e que ele serviria para a acalmar, como água que se deita numa fervura. Completavam-se. Ou talvez se anulassem.
Mais tarde, começámos a dar conta de pequenos desconfortos. Almoços de domingo onde mal se falavam, olhares desviados de propósito, a mão que se esquiva para não tocar o outro, como se tivesse medo de se queimar.
De vez em quando, perguntava-lhe como iam as coisas.
«O mesmo de sempre», respondia.
«O que é isso?»
«Tu sabes.»
«Andam zangados?»
«Às vezes.»
«Hoje?»
«Um bocadinho.»
«Culpa de quem?»
Nunca era culpa de ninguém - nunca é. Era o tempo a escassear entre eles, o trabalho a impor-se, o cansaço a não dar tréguas. Eram os filhos que não apareciam e ele que sempre sonhara ser pai. [O que ele não sabia era que os filhos nunca haveriam de aparecer: ela nunca quisera ser mãe.] Era o dinheiro contado até ao final do mês, era a escrita dela que não saía do sítio, era ele que não entendia que não havia mais nada que ela pudesse ser a não ser escritora. Eram dois caminhos a seguirem em direções opostas, como duas galáxias.
Ela deixou de aparecer ao domingo. Doía ainda mais o lugar posto à mesa e ela ausente. A nossa mãe nunca deixou de contar com ela, mas isso matava o meu irmão devagarinho. Às vezes eu tirava o prato dela ainda antes de começarmos a comer e a minha mãe voltava a pô-lo.
«Pode ser que ela ainda venha.»
Nunca mais veio.
Depois, deixou ele de vir. Ligava e dava uma desculpa qualquer: uma dor de cabeça, trabalho, uma torneira que era preciso consertar.
De vez em quando, eu ligava para ela e acabava por me cansar de ouvir os silêncios. Era como tentar conversar com um espaço vazio. Eu fazia perguntas e ela respondia com um hum ou com um sim ou um não secos. Acabei por desistir. Há sempre um instante em que o caminho se esgota e tudo acaba.
Não tentámos entender. Mesmo que tentássemos, não seríamos capazes. Eu cresci com ele e seria capaz de jurar que ele era incapaz de maltratar fosse quem fosse. Menos ainda uma mulher. Mais depressa me julgariam a mim capaz de o fazer. Ele? Nunca. Mas aqui estamos. Eu, a contar a história. Ele, preso a ela. E hoje, a única luz que ele vê é a que lhe entra pela janela da cela.