Creio que todos já ouvimos falar do “efeito borboleta”: o bater de asas de uma borboleta aqui pode provocar um tsunami no Japão. Este conceito, originalmente aplicado à meteorologia, depressa se tornou numa metáfora para tudo o resto.
Não sei se já deste por ti a pensar no que uma simples palavra ou gesto pode provocar e no quão longe os efeitos disso podem chegar.
Eu penso muito nisso.
Quando me atraso, por exemplo, penso inevitavelmente que aquele atraso pode ter-me salvado de um acidente que causaria a minha morte. Ou que o facto de me atrasar fez com que conseguisse ver qualquer coisa que mudou a minha forma de entender o mundo.
Um exemplo: a Lia, a minha melhor amiga desde há quase 20 anos, viveu uns anos em Beja. Quando voltou a Lisboa, chateou-me a cabeça para ir com ela para o ginásio onde ela andava. Aquilo ficava longe da nossa casa (moramos na mesma rua), mas ela queria porque queria treinar ali. E queria porque queria a minha companhia - teimosa é o nome do meio dela. Venceu-me pelo cansaço e eu acabei por ir. Isto fez com que descobríssemos que havia aulas ali de kizomba. Era uma coisa que eu queria experimentar há muito tempo e as condições acabaram por se reunir para que a coisa se desse. Frequentámos as aulas juntas durante uns três meses. Depois ela deixou de ir, deixou de treinar - devemos ter feito uns 10 treinos juntas, se tanto. Eu continuei. Mantive as aulas de kizomba ali durante mais de um ano (e continuei no ginásio mais dois anos, a treinar sozinha). Fiz mais aulas e workshops noutros lados. Conheci imensa gente. Fiz amigos. Acabei, eu própria, a dar aulas durante uns tempos, noutro sítio.
Se não tivesse sido a insistência dela para eu ir para ali, talvez eu não me tivesse cruzado com todas estas pessoas, talvez não tivesse aprendido o que aprendi. Talvez nunca tivesse dançado com alguns dos melhores dançarinos desta área. Mas aconteceu. Aquela teimosia dela mudou o meu mundo, até hoje. Já não faço aulas (mas quero voltar), nem saio para dançar com frequência (mas quero voltar a sair de vez em quando), mas continuo a dançar sozinha em casa sempre que me apetece.
Há dias, numa das newsletters da Aline Valek, li um trecho que se gravou em mim.
Personagens são valiosos, não apenas para quem os escreve. Também para quem os lê, que pode, através deles, enxergar possibilidades.
Quero escrever sobre pessoas que erram, que estão perdidas, mas se movimentam e saem do lugar. Ainda que de forma imperfeita. Ainda que se ralando inteiras no meio do caminho. É de gente em travessia que quero falar.
O importante é o movimento. E é isso que as histórias são, não? Um movimento de um lugar para o outro, de um estado para outro, do não-saber para o saber, ou ainda o contrário, aquele caminho que dissolve as certezas, que nos deixa nus.
Algo deve se modificar no processo. Ou no mundo da história, ou no interior do personagem, ou em quem lê.
Algo precisa mudar, nem que seja em mim. Ou contar histórias para quê? É um custo alto demais para nada sair do lugar.
Ler isto foi um bater de asas, para mim. Porque concretizou em palavras exactamente o que faço quando escrevo. É este estado de desconforto - meu, das personagens e das situações - que gera literatura. Escrever é agitar águas, remexer no lodo, rasgar a pele, fazer chorar, provocar dor e angústia e medo e saudade. Às vezes, de nada; às vezes, de nós mesmos, de coisas ou pessoas ou situações que nos são familiares e que deixaram pegadas na nossa memória.
Interessa-me levar os meus leitores a lugares de desconforto. Interessa-me que eles sintam coisas com que talvez não saibam lidar de imediato. Interessa-me provocar-lhes um calafrio na espinha.
Não falo apenas da escrita que assenta em situações duras. Claramente, não sou escritora de histórias de amor. Mas mesmo essas podem ser veículo de arrepios vários (e não, não estou a falar das Cinquenta Sobras de nada, não te preocupes). Também não escrevo só sobre pessoas que cometem crimes, ou que têm atitudes altamente condenáveis e puníveis por lei. Escrevo, essencialmente, sobre pessoas que podiam ser reais e andar no meio de nós (às vezes, andam mesmo).
O livro que estou a escrever está a ser um desafio.
Esta semana, no Instagram, uma autora levantou a questão a outros autores: que tipo de escritores somos? Escritores arquitectos ou escritores jardineiros? Este conceito, referido algures numa entrevista por George R. R. Martin (o senhor “Guerra dos Tronos”), divide os escritores em dois tipos: os arquitectos planeiam tudo de antemão e só avançam depois de terem a planta da casa terminada; os jardineiros plantam as coisas e deixam que o jardim cresça, meio livre e selvagem.
Respondi que sou arquitecta paisagista. Gosto de estruturar o que consigo controlar - as minhas personagens e as situações principais -, mas depois gosto de deixar que o terreno à volta se transforme num jardim (que, por vezes, se torna num verdadeiro matagal de ervas-daninhas que depois será preciso cortar).
Para este livro, arquitectei as personagens: sei quem são, sei muito sobre elas, não não sei tudo. Já aconteceu, inclusive, estar a escrever uma cena e perceber que alguém estava a bater à porta: era uma personagem que ainda não se tinha apresentado - nem a mim, nem à história. Dei um passo atrás e sentei-me com ela para um café. Conversámos. Contou-me quem é, o que faz, de onde vem. Percebi, então, quão essencial ela era para a história. Abri-lhe a porta e deixei que almoçasse com as restantes personagens que já lá estavam. Esta personagem foi uma planta que nasceu no jardim que eu não havia projectado.
Estou, obviamente, muito ligada a estas personagens que agora vivem comigo. Sinto que existem, e sinto que também para os leitores elas hão-de ser uma boa companhia.
Entretanto, hoje li um post do João Tordo acerca do seu novo romance, a ser lançado dia 14 de Novembro.
Quando terminei o ÁGUAS PASSADAS, prometi a mim mesmo que só voltaria a estar com a Pilar Benamor e o Cícero Gusmão - a improvável dupla que protagoniza a história; ela sub-comissária da PSP, ele um misterioso eremita que habita um casebre na Biscaia - se os leitores se afeiçoassem a estas personagens. Não são heróis imediatos nem fáceis. A Pilar é jovem, complexa e cheia de feridas; o Cícero um quase-velho melancólico, dono de uma inteligência perigosa. Na altura pensei que o cinzento da história, o ritmo inclemente da narrativa e a fragilidade da Pilar (que, a espaços, toma decisões inaceitáveis para o senso-comum) se conjugariam para que os leitores se sentissem um pouco assoberbados; até eu, que sou apenas o humilde cronista, senti que algumas partes foram penosas de escrever. E, no entanto, os leitores afeiçoaram-se tanto à Pilar e ao Cícero que, no decorrer dos últimos dois anos, me perguntaram inúmeras vezes se eles voltariam. A promessa está cumprida, e CEM ANOS DE PERDÃO retoma a saga destas personagens que me são tão queridas, e que tanto mandam em si próprias. Escrevê-las é um acto de supressão; limito-me a estar presente, em silêncio, observando o que acontece. É fascinante, divertido, inesperado, e, por vezes, muito doloroso. Como deve ser. Uma vez mais, os leitores - sempre argutos e sensíveis - decidiram este regresso.
Assinalei a negrito aquilo com que mais me identifiquei. Escrever personagens é exactamente isto: é ver a cena de cima, não intervir, deixar apenas que as coisas aconteçam, e relatá-las o melhor que posso, interferindo o menos possível. Obviamente, sendo eu a escritora, cada palavra é um bater de asas de borboleta que pode mudar a história toda. E isso já aconteceu. E vai voltar a acontecer.
Este pequeno texto do João Tordo foi mais um bater de asas para mim - tal como tem sido a leitura de todas as newsletters que estou a descobrir: em quase tudo o que leio há, muitas vezes, qualquer coisa que me faz querer escrever.
A parte mais bonita disto tudo é que aposto que todos os dias, nas vidas de toda a gente, há borboletas que batem asas. Imagina um jantar de amigos que apresenta duas pessoas, que se apaixonam e, anos depois, têm filhos… e um desses filhos estuda, faz-se médico e salva a vida de milhares de pessoas. Esses milhares de pessoas têm filhos que talvez não tivessem tido sem a salvação do médico. Entre estes filhos, estarão mais médicos, e talvez um deles venha a descobrir a cura para uma doença até então mortal. E essa descoberta salvará a vida de mais uns milhares de pessoas… e por aí adiante. Imagina que, um dia, alguém decide mudar de rota a caminho do trabalho, e que isso faz com que demore mais tempo. Nessa viagem, apercebe-se de que já não gosta do que faz e decide mudar de emprego. Muda. Esta mudança traz-lhe novos hábitos, novas pessoas, novas situações. E imagina que alguma destas coisas muda a vida de uma das pessoas com quem esta pessoa se relaciona. E imagina que, a seguir, essa mudança provoca outras… num infinito jogo de dominós a cair.
'Escrever é agitar águas, remexer no lodo, rasgar a pele, fazer chorar, provocar dor e angústia e medo e saudade. Às vezes, de nada; às vezes, de nós mesmos, de coisas ou pessoas ou situações que nos são familiares e que deixaram pegadas na nossa memória.'
❤️
Faz tanto sentido esta descricao e reflexão sobre as personagens... Ate em nós leitores, cada personagem é um bater de asas de borboleta mas q trás consequências impensáveis. Obrigado