#14 - O que escrevem os escritores
ou como ser escritor exige trabalhar muito com o que não é nosso
Há dias, a meio de um banho (aquele lugar-comum onde a maioria das pessoas tem as melhores ideias e onde nos chegam as grandes revelações), tive uma epifania.
Ser escritor, em Portugal, significa gastar muito mais tempo a trabalhar nas obras de outros escritores do que nas nossas.
Booooooooommmmm…
Parei, mãos enfiadas no cabelo cheio de espuma, e repeti esta frase uma e outra vez: para poder ser escritora, preciso de me dedicar muito mais aos textos de outros escritores do que aos meus.
Traduzindo: é praticamente impossível viver apenas da escrita em Portugal. Isto é sabido, não é novidade nenhuma, para aí desde o Camões que é assim.
Um escritor, para poder (sobre)viver, precisa de ter outro trabalho. Imaginando que decide trabalhar apenas em literatura, fará tradução, revisão, edição, guionismo, etc. Ou seja, passará umas oito horas do dia (imaginando que tem um emprego e que não é freelancer, porque, caso seja, a estas oito horas podemos acrescentar pelo menos mais umas quatro) dedicado ao que outras pessoas escreveram, em vez de estar sentado a escrever os seus próprios livros.
Caso decida (ou precise) de fazer outras coisas, então terá um emprego noutra área qualquer e, nos tempos livres, poderá então dedicar-se à escrita.
Não é preciso ser-se um génio para se perceber que, quando chega ao tal tempo livre, o escritor terá a cabeça feita em água. Cansaço, preocupações, outra frequência de onda sintonizada. Portanto, de modo a conseguir escrever, terá de arranjar técnicas para contornar isto tudo: escrever de manhã bem cedo, antes de ocupar o cérebro com tudo o resto, meter férias só para escrever, quem sabe, até, fingir que não tem uma família e passar a pasta da vida familiar durante uns tempos. Muito prático, portanto.
No meu caso, por muito que gostasse de me dedicar apenas à escrita, é impossível. Tenho uma casa para pagar, uma família para alimentar, obrigações e compromissos. Não posso largar tudo, isolar-me no meio do nada e passar a viver de raízes e de animais que apareçam mortos no alpendre.
Tenho um emprego a tempo inteiro, emprego esse que é recente, muito diferente do anterior e que traz uma exigência muito superior também - e está tudo certo! Sinto que é exatamente aquilo de que eu precisava, no momento em que precisava. Na vida, vamos tendo de fazer escolhas e eu escolhi ter um emprego a tempo inteiro em vez de trabalhar em literatura como freelancer. Precisamente por ter compromissos e obrigações, não me senti capaz de abandonar toda a segurança e de viver na incerteza, por muito que queira (muito), um dia mais tarde, viver apenas de palavras.
E é nisto que noto um fosso tremendo entre a nossa realidade e a americana, por exemplo. Lá fora, o mercado permite que escritores sejam apenas isso: escritores. Não lhes exige que façam da escrita um hobbie, um part-time ou uma teimosia. É-se escritor e pronto. Aqui? Impossível. Nem o Saramago foi apenas escritor. Nem nenhum dos nossos escritores mais conceituados é apenas escritor.
Isto pune, obviamente, a criatividade. Não me é possível escrever o que me apetece, quando me apetece. Já me aconteceu (demasiadas vezes) ter uma ideia que, por surgir num momento de trabalho a sério, não posso anotar. Resultado: acabo por me esquecer dela. Já me aconteceu com ideias, com frases, com bocados de texto, com personagens, com inúmeras coisas.
Neste momento, o meu ponto de situação é este: tenho um livro para escrever. Para que isso aconteça, algumas coisas têm de mudar. Rotinas, principalmente. Continuo a fazer revisão (porque posso fazê-la em alturas em que não posso nem trabalhar, nem escrever o meu livro - ou seja, nas deslocações de casa para o trabalho e vice-versa e à noite, em vez de estar a ler apenas por gosto). Tive de abandonar a tradução (que exige que esteja sentada à secretária com pelo menos dois ecrãs e que demora muito mais tempo do que a revisão). Mas tive, acima de tudo, de assumir que, para escrever os meus livros, não posso dedicar tanto do meu tempo (e de mim) aos livros dos outros. Pode parecer egoísmo, mas não é. É simplesmente fazer por mim o que mais ninguém fará.
Agora que assumi isto, a verdade é que o peso que carrego nos ombros se aligeirou. Odeio falhar, mas a melhor forma de falhar redondamente é meter-me em cinquenta mil coisas que depois não consigo completar. Por isso, nos próximos tempos, comprometo-me comigo mesma a só pôr no meu prato aquilo com que consigo efetivamente lidar. E comprometo-me também a fazer avançar a escrita do meu livro, que é algo que já queria levar bem mais avançada do que levo. É o que é. Não posso mudar o que está para trás, por isso dedico-me ao óbvio: o que posso fazer daqui em diante - escrever.
[Tenho um À Janela começado desde outubro. Acho que isto mostra o quão pouco espaço a escrita tem tido na minha vida. E não pode ser, nem eu quero que seja assim. Conto terminá-lo ainda hoje, narrá-lo e enviá-lo ainda esta semana. E voltar a escrever estes pequenos contos com a frequência que a minha cabeça sempre a mil exige.]
Nunca me canso de te agradecer por estares aí, desse lado, e por entenderes a vida ingrata dos escritores. Num mundo ideal, viveríamos apenas das nossas palavras. Até lá, obrigada por entenderes que ainda preciso muito das palavras dos outros. E por leres as minhas, claro.