Não foi por causa de Saramago que quis ser escritora. Saramago chegou mais tarde, quando o desejo já estava instalado e a escrita já era uma certeza para mim. Antes de Saramago, o que havia era a companhia que os livros me faziam quando ser filha única me transformava numa ilha inabitada.
Saramago chegou já no final da adolescência. O programa de Português do 12.º ano trouxe-me O Memorial do Convento como uma gárgula. Aquilo engolia-me. Olhava para o livro e sentia-me pequenina. Duvidei que conseguisse entender a obra (talvez não tenha entendido), duvidei de ser capaz de a ler. Mas li. Demorei-me no início, terra estrangeira para mim. Como assim, era possível escrever (muito bem) só com vírgulas e pontos finais? E as perguntas? E o ênfase? E os diálogos?
Aprendi depressa. Voei pelo resto do livro. Agarrei-me a outro logo a seguir e li quase tudo nos anos que se seguiram.
Quando chegou o Nobel, Saramago já era o meu preferido.
Orgulhei-me profundamente do prémio. Foi um reconhecimento mais que merecido, que, até hoje, nenhum outro autor português conseguiu alcançar. Nem poderia, quanto a mim. Talvez Pessoa pudesse ter ganhado o prémio, mas não imagino mais ninguém.
[Contudo, acredito piamente que, um dia, José Luís Peixoto irá a Estocolmo receber das mãos da rainha Victoria - sim, porque isto já não vai acontecer durante o reinado de Carl Gustaf.]
Há anos que não lia nada de Saramago. Tinha saudades de me perder naquelas narrativas intrincadas, cheias de ironia e de duplos sentidos. Há dias, a pensar nisto quando já estava deitada, abri O Ano da Morte de Ricardo Reis no Kobo. Li um bocado como quem mete a chave à porta, entra em casa e sente o cheiro que é ADN e memória e pele.
Estive a olhar para a bibliografia dele, e concluí que tenho quatro livros por ler. (Deixo de lado teatro, poesia e ensaios, que não são os meus géneros preferidos.) Comecei esta viagem pelo livro que Saramago afirmou em tempos ser o seu preferido, apesar de saber que dificilmente alguma coisa alguma vez escrita destronará o Ensaio Sobre a Cegueira na minha lista de preferências.
Além deste que estou a ler, faltam-me Levantado do Chão, História do Cerco de Lisboa e Terra do Pecado. Para ler nos próximos invernos, sem deixar arrastar muito porque fui-me deixando ficar naquele limbo entre o “quando acabar isto, não tenho mais nada dele para ler” e o “qualquer dia morro e não li tudo dele”.
Desviei-me do que queria escrever quando comecei este texto.
Saramago marcou indelevelmente as gerações de escritores que vieram depois dele. Sei que sou suspeita (obviamente), mas os meus preferidos, das gerações posteriores, são os que trazem uma espécie de marca d’água saramaguiana: João Tordo, José Luís Peixoto, Hugo Gonçalves, Ana Bárbara Pedrosa.
Não me comparando com nenhum deles (principalmente, não com Saramago), sinto que também eu sou muito influenciada pela escrita deles. Entenda-se esta influência como inspiração, como um elemento que me ajuda a melhorar a minha escrita, e não como uma tentativa de cópia - nenhum deles é imitável, e as cópias são sempre muito piores do que os originais.
É irreal achar que há escritores completamente imunes a influências de outros escritores. Ainda que isso não transpareça na escrita, a verdade é que tudo o que lemos nos influencia e acabamos por deixar que fiquem em nós pequenas partículas da escrita dos outros. E ainda bem que assim é, porque há poucas coisas tão boas quanto aprender com quem sabe mais do que nós.
A herança que Saramago deixou ao mundo é qualquer coisa de fenomenal. Não há nenhum autor que escreva da mesma forma, ele é realmente único e isso é muito difícil de repetir. Além da forma, o conteúdo é absolutamente divinal. Não há um livro que não seja pertinente, que não meta sal numa ferida qualquer, que não nos faça pensar e que não nos leve àquele sítio de desconforto onde somos confrontados com coisas que talvez preferíssemos ignorar.
Podia ficar horas a discorrer sobre Saramago. Não há escritor que me encante e intrigue mais. Não há escritor que lamente mais não ter podido conhecer. Mas ficam os livros. E as palavras. Sempre as palavras.
Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara.
Saramago
E eu que nunca voltei a tentar depois de uma tentativa de leitura frustrada durante o liceu. Inspiraste-me... Ainda por cima a minha mãe deve ter um monte deles na sua biblioteca... Vou já raptar.