Há muitos anos, li alguém dizer que as mulheres se fazem escritoras tarde por culpa da biologia: ter filhos, criar filhos, gerir casas e carreiras e mil dependências atrasa o processo. Não podia concordar mais.
Já disse inúmeras vezes: demorei quatro (longos) anos a escrever o meu primeiro livro. Inocente, achei que escreveria o segundo em meses.
Criei o ficheiro do próximo livro no dia 25 de Outubro (e acabo de me aperceber que, até agora, comecei 100% dos meus livros em Outubro). Tive a ideia, comecei a escrever. Depois, quase de seguida, criei a estrutura toda, construí as fichas de personagens, anotei pontos do enredo onde quero tocar. Avancei mais umas páginas (poucas) e esbarrei num longo período de deserto criativo.
Acontece.
De repente, fiz o que faço melhor: enfiei-me a alta velocidade num beco sem saída. Já me tinha acontecido no livro anterior: porque a escrita nem sempre é um dócil animal que temos perfeitamente domesticado - às vezes é um cavalo selvagem praticamente impossível de domar -, de vez em quando dou por mim a escrever cenas que se tornam problemas por que me colocam perante muros intransponíveis.
Um escritor avisado pega nisto, apaga e reescreve. Eu ainda estou na fase de ter muito apego pelas palavras que me saem dos dedos, e nem sempre as deixo ir embora de ânimo leve.
Portanto, cinco capítulos escritos, umas meras 17 páginas e umas impressionantes 5602 palavras - é isto que existe do meu segundo livro até hoje.
Ando há semanas sem saber como pegar naquilo, que volta dar ao texto. Senti que me faltava ali uma espécie de fio condutor, um elemento que unisse todos os pontos e que levasse a história pela mão. E faltava!
Simultaneamente (e tenho a certeza de que estes dois eventos estão ligados), ando há semanas sem me conseguir agarrar a nada para ler. Tudo me sabe a água choca, sabes? Ando ali a saltitar entre livros, lá me apareceu um que me agarrou (Romance de Verão, Emily Henry) e pronto: voltei a ficar sem ter o que ler - na verdade, só tenho uns 1500 livros em fila de espera, mas enfim.
Portanto, isto não é um processo contínuo - pelo menos, não para mim, e não por enquanto. Há paragens, recomeços, mais paragens, muito medo de falhar e de ficar aquém, milhares de dúvidas…
Depois, inesperadamente, a coisa dá uns saltos.
Aconteceu-me hoje.
Estava a conversar com um amigo sobre o ponto em que estou com a escrita e confessei que estava bloqueada. A resposta dele deu-me uma ideia - a ideia de que precisava para pôr tudo a mexer. De repente, sem eu esperar, percebi qual vai ser o meu fio condutor, o tal elemento que vai unir tudo nesta história.
Abri os documentos todos e comecei a escrever. Criei mais uma personagem (a mais fácil de criar e a mais clara para mim), reordenei a história, limpei as incongruências que tinha criado (sim, eu consigo criar contradições absurdas em 17 páginas!), mudei texto, anotei ideias, escrevi comentários.
Estou pronta para avançar.
Sinto que o próximo passo é… dormir.
Isso, dormir.
Ando a dormir pouquíssimo (porque andámos umas semanas a devorar avidamente as cinco temporadas do The Last Kingdom…) e preciso mesmo de voltar a habituar-me a adormecer ali pela meia-noite, uma da manhã. Depois de repor o sono vou estar capaz de me sentar a escrever sem estes travões.
Até ao próximo soluço.
Já não tenho ilusões: sei que não vou escrever o que falta de seguida (e, assim por alto, devem faltar umas 60 mil palavras), sei que vou voltar a sentir-me bloqueada e sei que vou ter de aprender a inverter a marcha nos becos sem saída que construo tão habilmente. Faz parte. Isto não é uma estrada em plena planície alentejana - é uma montanha cheia de escarpas e as subidas e descidas são íngremes.
Porque é que te conto isto?
Porque gostava de desmistificar a ideia (romantizada) de que os escritores são máquinas de contar histórias que só param para comer, dormir e, eventualmente, ir fazer um xixi muito de vez em quando. Não somos. A maioria de nós acumula funções: um trabalho a tempo inteiro, uma casa, uma família. A escrita é o que fazemos nos ínfimos momentos em que conseguimos existir para além do resto. É muito difícil viver exclusivamente da escrita em Portugal. Mesmo os escritores consagrados acumulam trabalhos: escrevem para TV, dão aulas, fazem traduções, etc. É o país que temos e o que o mercado nos permite.
Gostava que soubesses que isto de escrever é uma coisa que nos sai do pêlo (e da alma), e que travamos muita coisa na vida para nos dedicarmos às pessoas que vivem dentro de nós até que as transformemos em palavras no documento de Word.
Gostava também que soubesses que, no meu caso, nada me dá mais prazer do que isto. Mas o prazer dá muito trabalho e escrever um livro não é tarefa fácil nem é um processo linear. É doloroso, mexe com as minhas fundações, faz-me duvidar de mim, da vida e do mundo. Mas a verdade é que é uma coisa que antes, durante e depois me dá um gozo tremendo.
Neste momento, terça-feira, sete da tarde, em Lisboa, no final de um dia de trabalho em que estive rodeada de pessoas e de barulho, sinto que estou pronta para avançar. E enquanto travo e não travo… vou deixar a história surgir.
[Obrigada por estares aí. Talvez não saibas, mas o facto de saber que há pessoas desse lado à espera do que tenho para contar dá-me muita, muita força para continuar a mergulhar de cabeça nas minhas histórias.]
Chegaste até aqui e não te deixo ir embora sem te dar um miminho em jeito de antecipação…
Alice e Teresa encavalitaram-se uma na outra no patamar de meia dúzia de degraus que separava a pensão da rua. Assim que os estrangeiros saíram do carro, desceram para os ajudar com as malas. De olhos postos no chão, e com as mãos entrelaçadas com força, os nós dos dedos brancos de nervosismo, o único gesto dos novos hóspedes foi uma sucessão de vénias, como se agradecessem o acolhimento e a salvação.
O processo criativo nunca é linear. Recentemente li num livro que um escritor bastante conhecido (não me lembro agora quem é mas depois posso verificar) costumava dar por terminado o dia quando estava numa parte particularmente empolgante do enredo. Parece contra intuitivo mas ele argumentava que este hábito fazia com que no dia seguinte quando se sentasse para escrever já tivesse uma orientação, um fio condutor, que o ajudava a encaminhar melhor a trama e ganhar ritmo. Achei que valia a pena partilhar.😉
Mal posso esperar por ver o teu novo bebé cá fora mas serei paciente☺️
Hoje, gostei muito de te ler.