29 de Março de 2021, Bertrand das Amoreiras.
Num dos meus habituais périplos de hora de almoço, entro na Bertrand e vou disparada para a zona dos autores portugueses. O meu livro tinha acabado de sair, eu ainda estava abismada com tudo o que estava a viver e gostava de o ir encontrando pelas livrarias.
Acontece que, imediatamente ao lado, vejo este livro. A capa chamou-me a atenção. Peguei nele. O título ressoou cá dentro. Li a sinopse e soube que teria de o trazer comigo. Comecei a lê-lo sem saber mais nada sobre ele, não procurei opiniões. Nada. Só eu e um livro desconhecido.
Bati de frente na primeira página.
Li. Reli. Voltei a ler. Fiquei absolutamente estarrecida com isto. O pensamento seguinte foi “porque é que não fui eu a escrever isto, caramba??”.
Continuei a ler o livro e o que encontrei foi de uma crueza avassaladora. É uma história dura, muito violenta. É a história de Adelaida, que se vê absolutamente sozinha no mundo quando a mãe morre de cancro, em plena convulsão social em Caracas. É a história de uma mulher que, tendo perdido tudo, já não tem nada a perder. É a luta pela sobrevivência. É a crueldade, a baixeza, a mesquinhez. É a luta, o viver sem rede, sem base, sem nada. É ficar órfão de tudo, principalmente de si mesma.
Este livro tocou-me de uma forma que eu não esperava.
Está magistralmente escrito.
E depois percebi porquê: Karina Sainz Borgo, a autora, nasceu na Venezuela e abandonou o país precisamente por causa do clima de instabilidade que o país atravessava durante a era de Chávez. Vê-se bem que aquela escrita só acontece assim porque há ali muita verdade. Muito do que está no livro aconteceu, Karina vivenciou o medo, o desânimo e o fim do caminho daquele país que, palavras dela, hoje em dia já não é o país que ela deixou para trás.
(Espero que, a esta altura da leitura deste texto, já tenham aberto o site da vossa livraria preferida e feito a encomenda deste livro…)
Bom, avancemos. Ontem de manhã, no comboio, abri o Instagram e deparei-me com uma story da Tânia Ganho (que, para quem não sabe, é uma escritora e tradutora fabulosa), story essa onde ela partilhava a informação de que Karina Sainz Borgo ia estar ontem na Biblioteca Municipal da Amadora, para uma conversa com entrada livre.
E, de repente, o meu dia mudou.
A ideia inicial era sair do trabalho, ir ao ginásio e seguir para casa. Qual quê?! Nem pensar! Tratei de me organizar de maneira a conseguir estar presente, sem atrasos. E consegui!
Claro que não estava preparada e o meu exemplar (sublinhadíssimo - eu, que nunca sublinho, nem dobro, nem faço nada aos livros!) estava no seu lugar de destaque, numa das estantes da sala. Tratei de ligar para a biblioteca, para perguntar se iam ter livros à venda. Ninguém me soube responder (trágico!, por amor da Santa! Até os meus livros, que não foram editados em 22 países nem traduzidos para uma porrada de línguas, estão sempre disponíveis para venda nas sessões que vou fazendo). Decidi arriscar e não perder tempo à procura de uma livraria que tivesse o livro em stock. Pelo meio, uma grande amiga - a única a quem emprestei o livro inicial - pediu-me que lhe comprasse um exemplar porque, tal como eu, amou a leitura.
Tenho pena de a sessão ter sido tão pouco divulgada porque ouvir Karina falar sobre o livro, sobre Caracas, sobre o seu processo de escrita, sobre o segundo livro (que ainda não está traduzido cá e não sei do que é que a editora está à espera!) foi absolutamente fenomenal.
Que mulher incrível, senhores!
A meio da sessão dei por mim a pensar que era exactamente disto que eu precisava para me desbloquear. Estar ali deu-me uma vontade tremenda de me agarrar de novo à escrita. E deu-me, inclusive, ideias para outras coisas que poderei escrever mais à frente.
Depois da conversa com o moderador, a porta abriu-se para quem estava na assistência. Perguntei-lhe se escrever a livra dos seus fantasmas ou se, pelo contrário, lhos tatua ainda mais fundo na carne. Respondeu que não sabe escrever de outra forma porque é assim que ela é. Não sabe escrever sem violência porque isso faz parte dela. Brincou dizendo que lhe dizem que nunca poderá escrever um romance de amor… e eu identifiquei-me tanto com isto! Também eu só sei escrever com crueza, com violência, dando palco ao lado mais escuro da nossa humanidade (a de cada um, não a Humanidade enquanto espécie). É também eu nunca poderei escrever uma história de amor, porque não é isso que me habita, que me desafia e que me faz sentir desconforto. E é exactamente este desafio e este desconforto que preciso de trazer cá para fora. É exactamente isto que quero dar a quem me lê.
No final, quando falei com ela, expliquei porque é que quero tanto ler o seu segundo livro: porque conta a história de duas mulheres que enterram mortos de quem ninguém quer saber num cemitério ilegal. Portanto, se não bastassem já todos os pontos onde nos tocamos, ainda há este: o cemitério dela e o meu. E sim, disse-lhe que ela escreveu a primeira página que queria ter sido eu a escrever.
Não esperava que o dia de ontem tivesse sido isto: ouvir, conversar, aprender com uma das pessoas cuja escrita mais me marcou nos últimos tempos. Beber desta inspiração e sentir ganas de me sentar a escrever. Ter muita vontade de reler o livro, de novo virgem porque agora tenho um que ainda não sublinhei, mas que vai acabar tão ou mais rabiscado do que o outro. Não imaginava nada disto. Mas ainda bem que aconteceu. Porque isto pode muito bem ter mudado tudo na minha equação…
(Quando acabarem de ler o livro, digam-me o que acharam…
Já reservei na biblioteca (as estantes cá de casa já estão lotadas)!
Minha amiga!!🧡🧡
Agora terei ambas algures na minha casa. Em livro e em foto!!